sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A rapariga na janela


Vivia sozinha ao fundo da rua, aconchegada por meia dúzia de gatos vadios que recolhia de tempos a tempos.
O escuro das noites já não a assustava, aprendera a amá-lo ao som do relógio de corda que herdara do avô, homem de ombros largos e sorriso ausente, feito a pulso nas minas de Tungsténio, agora um museu às moscas.
Nunca casara. Nestas noites de solidão lembrava-se do Alberto que a mãe afastara com tanto afinco porque não era filho de boa gente. O moço acabara por se fartar e casar com a primeira que lhe apareceu à frente.
Quando se cruzavam na rua, ela baixava o olhar para a calçada e ele fazia menção de dizer algo que nunca passava a garganta. O silêncio dizia tudo.
Após a morte da mãe, refugiara-se nos livros que devorava, vivendo tórridos romances com as personagens, sofrendo das suas angústias e dos seus medos, rindo à gargalhada com as suas desventuras.
Criara um mundo só seu, onde só a recordação do Alberto a puxava para o mundo real. Vivia do que a mãe lhe deixara e de sonhos perdidos, revividos em livros.
Quando a noite chegava, fria como a alma que habitava o seu corpo por amar, espreitava à janela e desenhava corações no vidro embaciado pela respiração. Poderia o amanhã ser realmente um novo dia?

(continua)

4 comentários:

Carlota Pires Dacosta disse...

O amanhã será sempre um novo dia. A decisão de mudança, essa é que nos faz reflectir dias e dias e dias.
Mais um belíssimo texto.
Como sempre, Adorei.
:)

Roxanne disse...

adiou a felicidade... e agora alimenta uma solidão preenchida por sonhos!

obrigada pelo reparo! nem me tinha apercebido! :)

tempus fugit à pressa disse...

pois ....como o homem que se alimenta dos sonhos em que joga

não viverá mais feliz em sonhos
que no tungsténio dos vossos contos

nos bimbos do volfrâmio ficava melhor

MagicWoman disse...

que bom que é ler-te!

kiss