sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A rapariga na janela


Vivia sozinha ao fundo da rua, aconchegada por meia dúzia de gatos vadios que recolhia de tempos a tempos.
O escuro das noites já não a assustava, aprendera a amá-lo ao som do relógio de corda que herdara do avô, homem de ombros largos e sorriso ausente, feito a pulso nas minas de Tungsténio, agora um museu às moscas.
Nunca casara. Nestas noites de solidão lembrava-se do Alberto que a mãe afastara com tanto afinco porque não era filho de boa gente. O moço acabara por se fartar e casar com a primeira que lhe apareceu à frente.
Quando se cruzavam na rua, ela baixava o olhar para a calçada e ele fazia menção de dizer algo que nunca passava a garganta. O silêncio dizia tudo.
Após a morte da mãe, refugiara-se nos livros que devorava, vivendo tórridos romances com as personagens, sofrendo das suas angústias e dos seus medos, rindo à gargalhada com as suas desventuras.
Criara um mundo só seu, onde só a recordação do Alberto a puxava para o mundo real. Vivia do que a mãe lhe deixara e de sonhos perdidos, revividos em livros.
Quando a noite chegava, fria como a alma que habitava o seu corpo por amar, espreitava à janela e desenhava corações no vidro embaciado pela respiração. Poderia o amanhã ser realmente um novo dia?

(continua)

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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Ensaio de amor sobre o Tejo

Como o som de um piano,
deambulas por entre rostos de Outono,
até à beira rio.
O Tejo tem algo de humano,
ri como um homem,
beija como a saudade de quem ama.
O Tejo,
O Tejo tem alma.

Nos teus olhos correm crianças que,
descendo colinas verdes de sonhos,
saltitam como quem dança, colhendo papoilas.

Sentada, sentes a água
e o barcos que passam, recolhendo a casa.
As gaivotas rodopiam,
e os carros apitam como despertadores.
Despida, entregas a mágoa,
à corrente que passa e não volta.

A compasso, desenhas os passos com que te afastas,
deixando a maresia solteira.
No teu encalço, não há mais memórias,
nem sonhos, nem histórias.
O Tejo, que tem alma de pássaro, voou
e levou com ele toda a dor.

As suas margens são a pauta onde escrevemos a sinfonia,
este adagio perfeito,
onde abraçados terminamos o dia.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Ateia-me

ateia-me
consome-me
estende nos lençóis todo o calor,
cai sobre mim como uma vaga,
povoa-me a terra estéril de amor.

inunda-me
circunda-me
desbrava até mim o caminho,
sê a febre que se alastra,
mata-me o desejo devagarinho.

Nasce, vive morre,
abre, a quente e sente,
minha força, concreta, insane,
meu amor incerto disforme
a vida que se materializa no teu grito
ao ecoar eterna em meus lábios.

domingo, 24 de outubro de 2010

A cidade


A cidade amanhece aos poucos, enquanto o cheiro a ria, o mar, a lodo, inunda as ruas despidas de gente. O sol do Outono, esplendoroso, reina alto no céu, apesar de ainda ser bem cedo.
Os sinos repicam a chamar para a missa do dia santo.
Um ou outro casal, vestido a rigor, passeia-se por entre gaivotas atentas, pousadas nas proas dos barcos ancorados e o matraquear das cegonhas altivas que, nos beirados mais altos, vigiam as ruas, atentas a todo o movimento.
Aos domingos de manhã não há carros, ou quase não há. Não há barulho, não há movimento. A languidez do dia contagia tudo e todos. O tempo leva mais tempo, as horas deslizam, não correm.
O som do moinho de café que sai de algumas portas anuncia o aroma que rápido chega ao meu encontro. Deixo-me levar pelo despertar dos meus sentidos. Pela viagem que me leva até terras longínquas onde arbustos enchem as paisagens de pequenas pérolas rosadas que depois da torra, chegam a todos os cantos deste mundo.
Neste pequeno pedaço de universo, de prédios antigos e ruas esquecidas, sigo a calçada gasta do tempo e vou até ao mar. Atravesso a linha do comboio, também ela adormecida e respiro fundo, como se me estivesse a alimentar desta maresia que todos os dias vive presente na cidade mas que hoje, Domingo, apogeu da contemplação, parece mais viva, parece mais real.

A varanda sobre o casario.

Repousas na varanda sobre o casario,
abres as asas num sorriso,
fechas os olhos,
e navegas rente aos telhados,
descendo as colinas até ao rio.

A alma é livre quando se alimenta do mundo,
quando se entrega sem esperança,
quando se fixa no luar.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Foto de mar e poema de céu


O céu desceu em pedaços sobre mim,
sob os meus olhos,
e fez-se paraíso quando do teu sorriso
brotaram as primeiras ondas da maré.

O batel desgovernado,
fez-se em teus seios abrigado.

Fiz da areia que levaste no corpo,
o vidro deste copo em que mato a sede,
o sal desta fome que me consome,
a prece desta religião sem fé.

Faço dos dias as noites mais longas,
e das esperas eternidades,
na busca de um pouco mais de agora
na busca de ti, sem fim.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

As tuas palavras

As tuas palavras são como searas ao vento,
ondulando a paisagem,
rodopiando como um remoinho,
levantando pasto e pós e sementes,
que depois de tanto viajarem, se deitam à terra
(que me lembra os teus olhos)
e germinam para cobrirem de verde o vasto
e impreciso mar das planícies.

Os teus segredos são espelhos de cristal,
que reflectem o bem e o mal
de em meus passos inseguros
caber toda esta incerteza, todo este silêncio mudo.

No florir de cada árvore vive um segredo,
que se estende além do medo e se espelha no luar.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Soneto

O céu enchia-se de farrapos de azul,
e as noites pareciam morrer cada vez mais cedo,
quando vinhas devagar, em segredo,
rumando até mim, como um pássaro ao sul.

Da tua boca saíam notas de uma balada,
do teu cheiro sorriam cantando cigarras,
quando nos lençóis soltávamos amarras,
e navegávamos incertos pela madrugada.

Enquanto caía a noite e o céu se enchia de estrelas,
no promontório que se debruçava sobre o mar,
pintei um quadro de saudades a aguarela.

Os teus olhos eram a brisa e o voo das gaivotas ao luar,
o meu rosto era a sombra na parede à luz da vela,
o meu medo era era ter de partir, era ter de ficar.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Meu corpo


Meu corpo é um comboio que descarrila no teu,
um avião prestes a levantar voo
sem autorização para voar.
Meu corpo é as linhas que escreves
quando não tens nada para escrever
e te limitas a desenhar coisas imperceptíveis numa folha que amarrotas
e deitas ao vento.
Meu corpo é os segredos
de uma floresta esquecida
de uma ilha perdida numa vastidão qualquer deserta.
Meu corpo é incerto,
mas com o teu por perto,
cresce e vagueia por mundos desconhecidos.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Não chove em teus braços

Nos teus braços não chove,
há apenas uma bruma que se entranha
e faz desejar o infinito.
Não há tempestades nem ventos do norte,
nem choros esquecidos
nos vales, nos montes.

Relembro-te como relembro as ruas que percorri de mochila às costas
e destino nas mãos.
Sinto-te como se morasses nos meus gestos,
e em cada golo de água,
matasse a sede que tenho do teu corpo, e do meu,
porque já não se distinguem um do outro.
Não depois de todas as tardes,
não depois de todos os acordares a olhar o céu.

Não, não chove em teus braços,
e as estrelas já não são mais que pedaços
do teu sorriso a contemplar-me.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Ouve

Ouve a água que cai das telhas,
enquanto me abraças a boca com os teus olhos de veludo.

Ouve quando te sussurro que,
de todos os castelos que visitei em silêncio,
foste o único do qual via a mundo
e o rasto das aves a voarem para o sul.

Na guarita de vigia,
passávamos todo o dia a desenhar poemas na voz
e a cantar canções ao eco,
dedilhando guitarras que só nós víamos.

Depois, depois descíamos,
e chegados à fonte, que nos dava de beber,
sorríamos sem saber,
porque éramos felizes.

Quando a noite chegava,
fazia deslizar o teu vestido,
murmurava-me pelo teu corpo
e silenciava-me nos teus ais.

Ouve-me quando te espero na espera,
e quando o amor é tão certo,
como o vento do deserto
que sereno, muda as dunas de lugar.