segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A rapariga na janela II


O dia nasceu à pressa, sem lhe dar tempo de se vestir a preceito. Abotoando ainda a camisa, saiu de casa e irrompeu, intempestiva, na rua ainda deserta. Os sinos da igreja ecoavam pelo casario e a bruma retirava-se suavemente acompanhando o partir da noite, enquanto os galos competiam entre si saudando o sol que despontava.
Seguiu anónima pela podridão das vielas, em passos apressados e sôfregos, no mesmo ritmo em que corria os olhos pelas páginas de uma perseguição como a que lera na noite anterior.
No labirinto das letras que antes lhe parecia um imenso desconhecido, tornara-se navegadora, mestre do seu destino. Hoje seria mestre da sua vida também.
A vida em que se lia, a vida em que se movia, sabiam-lhe a mistério, a encanto, a descoberta, ao desejo de ser mais do que aquilo que a tinham deixado ser. Quando lia era livre, era ela. Estava na hora de também o ser na realidade.
Quando finalmente se acercou da velha oliveira olhou para trás. Ninguém a tinha seguido. Encostou-se ao tronco, ofegante, recuperando o fôlego.
O rosado do céu da aurora dava agora lugar a um tímido azul com pequenas nuvens aqui e ali. Estavam todos na missa, pensou. Era a altura ideal.
Sem perder tempo, tacteou a raiz da velha árvore até encontrar a reentrância. A medo, inseriu primeiro a mão, depois o braço quase até ao cotovelo, sentindo terra, musgo, lascas de madeira e teias de aranha e, quando estava prestes a desistir para procurar do outro lado, sentiu a forma longa e achatada. Sem esforço retirou-a e sentou-se no chão frio e húmido de orvalho. Sobre o colo começou a abrir o misterioso embrulho...
Um vento forte, inesperado, soltou-lhe o cabelo e enfunou-lhe a saia como se uma vela fosse. Apressadamente, voltou a dobrar, incrédula, o pano que cheirava às entranhas da terra e a tempos esquecidos. A mensagem no vidro da janela, onde desenhara os corações na noite anterior, era verdadeira. O punhal era real.

(continua)

5 comentários:

Roxanne disse...

o romantismo dos coracoes desenhados na janela vai depender da funcao do punhal enterrado...

S* disse...

Estou a gostar... fiquei curiosa. O punhal era real... um bocadinho macabro ou vai sair daí algo bonito?

Carlota Pires Dacosta disse...

Estou a gostar imenso. A passagem da reentrância da árvore está estupenda.
Gosto muito de Te ler.
;)

Em@ disse...

ora...e fui eu carregar no continua, para ler o resto! :))
gostei. muito.
beijo

OutrosEncantos disse...

... não demora tantooo..., o conto está muito bom e criou enorme expectativa... :-)
aguardando... beijo.