quarta-feira, 23 de junho de 2010

O merceeiro

Dentro da minha memória de infância, por entre os retalhos do que já esqueci, há algo que deixou a sua marca e, embora esta também já tenha perdido os contornos definidos de uma verdadeira memória, ficaram os fragmentos e, sobretudo, os cheiros.
Vivi até aos oito anos no campo. Não numa localidade rural, mas efectivamente no campo, num monte ladeado de cedros povoado de pássaros que cantavam livremente e se calavam à nossa passagem.
Foi aqui que aprendi o cheiro e o sabor da natureza. Foi onde aprendi a ver a chuva bater nos vidros das janelas e escorrer, formando regatos que a minha imaginação animava. Foi quando aprendi a amar os animais, as plantas, o cheiro da terra molhada nas tardes de Outono em que o verde das searas cobria a paisagem, ocupando o espaço do castanho da terra lavrada.
Lembro-me de ver borregos a nascer e do caiar das paredes no fim da Primavera. Lembro as lareiras e os enchidos no fumeiro, o barulho dos tractores ao longe, esventrando a terra, os caçadores que todos os domingos e quintas-feiras calcorreavam quilómetros...
São estes pedaços que tento agrupar e formar uma recordação coerente de tudo o que passou, mas, quanto mais tento, mais distante me parece.
Como comecei por dizer ao início, há um episódio que ficou marcado. Talvez pela expectativa que me criava ou simplesmente porque estava destinado a revivê-lo pelos aromas.
Todas as semanas, não recordo o dia especifico, o velho jeep Land Rover subia a pequena inclinação que ligava a estrada principal à entrada do monte e buzinava duas vezes. Não me lembro se corria ou se simplesmente já o esperava. Sei que não cabia em mim de excitação, e, quando a minha mãe chegava, era ver o senhor António abrir as portas de par em par, e deslumbrar-me com o seu mundo de mercearias ambulantes.
Havia de tudo, desde chocolates, a sabão, pão, enchidos, coisas para a escola, tintas, bolos, queijos, tudo o que a minha imaginação alcançava e muito mais. Havia como que uma novidade permanente sempre que este senhor, cujo rosto já esqueci, naquilo que hoje em dia percebo ser apenas um ganha pão, nos visitava. Para mim era um vendedor de sonhos. Não daqueles utópicos e irreais, sonhos concretos, como uma chocolate da regina, ou um lápis novo para levar segunda feira para a escola. Era alguém que transportava aquilo que eu hoje valorizo mais. Ingredientes! Era com o que ele trazia que aprendi a ver a minha mãe transformar em algo delicioso. A sua feira de cores e sabores, fez-me querer aprender a verdadeira alquimia que é cozinhar.
Tudo isto pode parecer banal, mas ,ainda hoje, sempre que entro numa velha mercearia com armários de madeira e balcão gasto pelo tempo e pelas gentes (cada vez mais difíceis de encontrar), recordo-o tudo isto com carinho.
Com a alcofa aviada, a minha mãe voltava para casa e eu ficava a vê-lo partir na mesma estrada que o trouxera. Agora era tempo de arrumar as compras e deliciar-me com uma sombrinha de chocolate ou uma bomboca.
Nestes tempos em que a frieza acompanha as nossas idas às compras, normalmente em hipermercados desprovidos de calor, é bom recordar que nem sempre foi assim.

9 comentários:

sakura disse...

Ai, amor... Fizeste-me relembrar a nossa ida ao mercado neste fim de semana... As bancas de frutas e hortaliças cheias de cor, cheiros e frescura.
São lugares onde apetece manter a tradição no seu melhor.
E o arrumar as compras...sabes o quanto gosto de o fazer na tua companhia :)

Amo-te muito.

Flor

chakrach disse...

... caramba, que saudades!!!...

a Gaja disse...

Eu cresci aqui pertinho da cidade mas era no meio do nada na altura...e acontecia exactamente o mesmo, uma carrinha levava maravilhas até lá...recordações fantásticas.

S* disse...

Ei tive uma infância na vila... com velhotes, hortas, animais e muita união familiar. Não a troco por nada deste mundo.

Lia disse...

é que vê-se logo que és alentejano!
fizeste-me recordar cheiros e sabores da infância! obrigada!

For you disse...

Li-te a recordar os meus cheiros e sabores que me levam aos meus avós... Obg.

sakura disse...

Passei por aqui para reler o merceeiro...para matar saudades da tua escrita, amor.
Escreve mais. Gosto tanto de te ler, e gosto tanto deste teu cantinho.

Amo-te muito.

Flor

Kikas disse...

só consigo sorrir perante este post :) digo isto muitas vezes mas é a verdade.

Ana disse...

Eram 500 g de fiambre faxavor.