terça-feira, 9 de novembro de 2010

A rapariga na janela III


Nervosa, correu até casa, por entre gente que despertava para mais um dia de trabalho e restos humanos da noite a tresandarem a vinho e luxúria. Nunca soubera a que sabia o toque de um homem, o roçar da pele, o acalmar do desejo que tantas vezes sentira subir-lhe pelas coxas e desaguar entre as pernas, a ansiar de ter um corpo no seu. Nunca sentira nada a não ser o que as letras impressas lhe transmitiam. Iria o punhal mudar isso?
Chegada a casa, derramou-se autenticamente no chão da sala. A adrenalina fazia-lhe as mãos tremer e o coração bater em taquicardia enquanto desembrulhava mais uma vez o misterioso punhal. Sentindo o toque frio da sua lâmina no rosto deslizou a ponta ameaçadora pelo pescoço, até ao peito e num movimento brusco rasgou a blusa amarfanhada que vestira à pressa poucas horas antes, deixando o peito virgem de qualquer toque, de quaisquer lábios, nu ao ar abafado da casa vazia. Deixou-se cair de costas sobre o soalho e abraçou bem forte o punhal com ambas as mãos contra o peito arrepiado do frio.
Com as lágrimas a escorrem-lhe pelo rosto, motivadas por tudo e por nada, adormeceu sob o olhar de retratos antigos de olhar reprovador e o tic tac do relógio pago com o dinheiro das minas.
No sono perturbado de uma alma sonhadora, viu-se num quarto vazio, sem portas nem janelas, sentada numa cadeira sem se poder mover. Numa pequena mesa estava o punhal e uma foto de um homem sem rosto. A escorrer num dos cantos, uma espécie de água avermelhada, brilhava com a pouca luz que as frestas do tecto deixavam entrar. Quis gritar e não conseguiu. Não tinha boca.
Um livro aberto no seu colo nu, exibia uma frase enigmática, "a tua mão no punhal segura a resposta".
Acorda bruscamente com o som de pancadas fortes na porta de casa. Estremunhada, sem se dar conta que tinham passado horas, olha em seu redor e tudo está igual. O punhal está marcado nos seus seios e um leve fio de sangue escorre-lhe pelo peito até ao umbigo. Adormecera agarrada a ele como se estivesse agarrada à própria vida.
As pancadas estavam cada vez mais fortes e faziam estremecer o ar solitário da casa. Pé ante pé, aproxima-se da porta e reconhece uma silhueta familiar. Seria possível? Depois de tantos silêncios cruzados na rua, ele estava a bater-lhe à porta. O que poderia Alberto querer dela?

(continua)

4 comentários:

S* disse...

Adormecer agarrada a um punhal não augura nada de bom... mas pode ser que a chegada dele dê um novo rumo à história.

Carlota Pires Dacosta disse...

O punhal é a representação da vontade de vencer, vontade de ultrapassar "o" obstáculo da sua vida de prisioneira.

Estou a adorar cada vez mais.
Adoro ler-te.

Beijo

Anna disse...

Inquietante e aliciante... A aura de mistério vai-se fundindo com um ambiente e uma personagem aparentemente tão comum...

Gosto muito de sentir os vários ritmos dentro da narrativa (muito bem conseguidos, tendo em conta a sua extensão!), é assim que se mantém um leitor desperto!

Fico muito muito curiosa para ler mais!
Beijinho

Carlota Pires Dacosta disse...

Para quando a continuação deste post???
Tenho saudades de te ler...
Beijo