O vento assobia lá fora em mais uma noite de chuva. Não me incomodam, nem um, nem o outro, tão pouco a suposta solidão que é viver sozinho.
Quando fecho a porta, após mais um dia de trabalho, dou duas voltas à tranca e, após cumprimentar os gatos, que me recebem sempre em uníssono, dou também duas voltas à tranca da alma e fecho-me para o mundo, ou melhor, para o mundo fora de mim, o mundo que me vê.
Por detrás da minha porta da rua, sou o espaço que existe das paredes até às janelas e pelas janelas posso voar. Tenho o mar à minha frente e o céu que raramente se esconde e, sobretudo, não temo a chuva nem o vento. Eles são parte de mim, deste meu eu interior que se projecta nos outros como... bem... como um mar sereno, uma nuvem imóvel num céu azul quase idílico. Nada mais errado...
Quando os gatos finalmente serenam, fica o silêncio dos quadros nas paredes e dos livros ainda por arrumar nas estantes, só cortado pela televisão quando se justifica abstrair-me de mim próprio até encontrar de novo o equilíbrio. Quando o consigo volto ao silêncio da sala, do quarto, da cozinha. Não falo, nem com os gatos e sabe-me tão bem poder não falar.
Questiono-me se conseguirei ocultar para sempre este mar e este vento que remoinham dentro de mim. Se serei eternamente capaz de mostrar placidez quando na realidade navego na orla da tempestade... Se haverá motivo para os libertar e, sobretudo, o que aconteceria se o fizesse... Mas não perco muito tempo com isso, são apenas pensamentos e, apesar do medo de tantas vezes já não saber se sou como sou ou se sou como sempre quis mostrar ser, despeço-me de gatos e, já no quarto, de luz apagada, deixo-me embalar pela música que oiço sempre antes de adormecer...
Um comentário:
Há pássaros presos entrelinhas.
Um dia soltar-se-ão.
Lídia
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